30/12/2008
Usque adeone mori miserum est?
Hubbard - Repost II
Hubbard - Repost I
24/12/2008
Planos do delírio
No plano da realidade, os acontecimentos são mínimos, porque no universo de Nélson, eles não têm importância maior que situar a trama para o espectador, resumindo-se a pequenas falas de repórteres, gritos de jornaleiros ou comentários de médicos que atendem a acidentada. Na peça, o que conta são as memórias e os delírios da moribunda, memórias cada vez mais fracas e delírios cada vez mais fortes, conforme a morte se aproxima, memórias e delírios libertos da censura porque, agora, estão ambos sob o comando do subconsciente. E não posso acreditar que o acaso seria o responsável por Lester Young ter realizado sua primeira gravação como líder no dia 28 de dezembro de 1943. Lester, assim como Nélson, não dava a mínima para o plano da realidade – entenda-se, aqui, partitura. A sua história era contada mais e sempre no plano da memória (que lhe possibilitava armar divertidos mosaicos de citações e frases compatíveis) e no plano da alucinação (através de improvisos que, sem exagero, até hoje nos emocionam e quase nos desamparam por sua beleza inevitável). Depois, Lester volta à derrapagem, às vidraças quebradas e à sirena. Para os amigos, como presente de Natal, deixo a faixa Sometimes I’m Happy , com Johnny Guarnieri (p) no plano da memória, Slam Stewart (b) e Sidney Catlett (d) no plano da realidade e Lester Young (ts) no plano do delírio.
23/12/2008
21/12/2008
The True Birth
Claude Thornhill (1909-1965) começou a carreira tocando piano em pequenas bandas do meio-oeste. Na década de 1930 trabalhou para Paul Whiteman, Benny Goodman e Ray Noble. Após participar de algumas sessões com Billie Holiday e Maxine Sullivan, Thornhill forma sua própria banda em 1940, utilizando trompas, tubas, trocando os saxofones por clarinetes e eliminando os vibratos gratuitos que tanto caracterizariam o swing. Sua sonoridade original, cristalina e complexa estava repleta dos elementos que, logo a seguir, permitiriam o surgimento do cool jazz. Em 1947 realizou uma das primeiras e mais bem sucedidas gravações das músicas de Charlie Parker no contexto de big band – saindo-se inclusive melhor que as gravações realizadas pela banda de Gillespie. Infelizmente Thornhill morreu praticamente esquecido e sem o reconhecimento que merece ter, talvez em parte pela incompatibilidade da dança tradicional com o estilo enlouquecido do bebop e, também, pela complexidade e agressividade deste. Daí também a efemeridade e insucesso geral das big bands do bebop. Para os amigos fica a faixa Donna Lee , gravada durante uma transmissão radiofônica de 1947. Entre os músicos que integram a banda de Thornhill vale destacar Lee Konitz (as) e Red Rodney (t). Na faixa em apreço cabe atenção aos excelentes solos de Allan Langstaff (tb) e Barry Galbraith (g).
17/12/2008
Lançamento imperdível
Esta entrevista com Reinaldo Santos Neves se estenderá pelas próximas quarta (10), quinta (11) e sexta-feira (12). O escritor lança A ceia dominicana no próximo dia 18, a partir das 19h, na Biblioteca Pública Estadual, na Praia do Suá.
A ceia dominicana: romance neolatino é a conclusão da trilogia iniciada com dois textos publicados há mais de duas décadas: o Poema graciano (1982) e o romance As mãos no fogo (1983). Por que retomar esse universo, vinte e cinco anos depois?
Projetos literários estão sujeitos a todo tipo de vicissitude, inclusive deserção por parte do autor. No meu caso, se abandonei alguns pra nunca mais, abandonei outros pra retomá-los em outro formato. Dentre estes, posso citar o romance Filhos de Anna: originalmente ambientado em Vitória no século XX, foi a meio caminho transferido pra França do século XIV e convertido na Crônica de Malemort (1978); posso citar também o próprio Mãos no fogo, totalmente reescrito numa linguagem mais elaborada pra substituir a linguagem despojada e enxuta que era a marca da primeira versão. Essas mudanças de formato se fizeram sem longas interrupções: identificada a mudança necessária, tinha início a reformulação do texto. No caso da Ceia dominicana, porém, o intervalo foi bem mais longo entre as duas ou três primeiras tentativas e esta última, que redundou na conclusão do romance. Por outro lado, durante esses 25 anos, em momento algum deixei de acreditar na validade do projeto, de ter fé em sua originalidade e em seu potencial literário. É difícil largar de mão um projeto assim. Além disso, havia a questão de honra de fechar a trilogia anunciada na edição das Mãos no fogo. Assim, minha fidelidade de visionário acabou recompensada: pude encontrar a abordagem que, se não a única possível, me parece ter sido a melhor e mais adequada pra este autor aplicar a este projeto e concluí-lo.
Este livro já está anunciado no texto que Herbert Daniel fez para a orelha de As mãos no fogo. Daniel também já falava, a respeito do que seria essa terceira parte da trilogia, de uma inspiração declarada no Satyricon. Por que optar por esse diálogo com um texto da antiguidade clássica ao escrever uma estória ambientada no balneário de Manguinhos, em pleno final dos anos 70?
Não me lembro hoje, depois de tanto tempo, exatamente o que me deu a idéia de um romance inspirado no Satyricon. No romance Sueli e em correspondência com amigos há referências ao capítulo de cerca de 30 páginas suprimido das Mãos no fogo pra constituir um romance à parte. Em carta de dezembro de 1981 ao escritor João Felício dos Santos sintetizo o projeto como “uma tentativa de recriação moderna da ceia de Trimálquio, do Satyricon” e menciono um dos pratos da ceia, “gato com cerejas, que dizem ser fina iguaria.” Na correspondência posterior o que há são referências eventuais ao conflito entre autor e texto que me levou a uma primeira trégua, na qual me dediquei, por puro diletantismo, à tradução do romance Vendaval na Jamaica, de Richard Hughes, que foi concluída mas não editada. Quanto ao diálogo entre uma história ambientada em Manguinhos e a antiguidade clássica, esclareço que a idéia pro que seria digamos assim um Satyricon brasileiro precede a escolha de Manguinhos como cenário da história: Manguinhos não é cenário do capítulo suprimido, mas do romance que lhe tomou o lugar. E, se o cenário tinha de ser uma praia, porque é numa cidade (não identificada) da baía de Nápoles que se passa boa parte da ação do Satyricon que chegou até nós, era natural que minha escolha recaísse sobre Manguinhos. Manguinhos está no imaginário de toda a minha família. Meu avô materno, Ceciliano Abel de Almeida, já nos anos 20 tinha ali uma casinha de veraneio, e foi lá que se refugiou, como pessoa ligada ao partido da situação, assim que se consumou a vitória dos revolucionários de 1930. Eu mesmo sempre passei as férias lá, desde criança até a idade madura. Aquela velha Manguinhos está guardada dentro de mim com muito carinho. Quanto ao ano do romance, 1979, não podia ser outro: afinal, trata-se de uma seqüência imediata da história das Mãos no fogo, que se situa em fins dos anos 70. O próprio Poema graciano se data a si próprio no verso 351: “ano setenta e nove: eu vinte e sete”.
Em As mãos no fogo, a Vitória do final dos anos 70 está toda lá, retratada de forma um tanto quanto realista. Já a praia de Manguinhos é narrada nA ceia dominicana sob um forte viés do fantástico, do extravagante, o que até nos aproximaria, de certa forma, ao universo da Roma antiga, certo?
Na verdade, o elemento fantástico só se manifestou quando já ia avançado o trabalho de escritura desta versão do romance. Até então, não tinha me passado pela cabeça essa possibilidade: o romance seria tão realista como As mãos no fogo, só que bem mais extravagante, pra usar o seu termo. Aliás, se comparamos, nesse aspecto, A ceia com o Satyricon, vemos que A ceia chega a apelar pro fantástico mais que seu modelo, porque em Satyricon não há nada de explicitamente surreal a não ser uma ou outra história vicária, narrada pelos personagens; há magia, por exemplo, mas não há milagres nem portentos. Mas, à medida que fui desenvolvendo o texto, a dimensão fantástica começou a se impor, o que me pareceu natural e até necessário, porque pavimentava o caminho até o universo de Roma antiga. No entanto, os elementos surreais da Ceia podem até, em grande parte, ser explicados de forma realista, sobretudo se admitirmos que o narrador, como poeta que é, tende a lançar mão de licença poética pra contar a sua história. Convém lembrar que, pra todos os efeitos, A ceia não é um romance de autor, mas de personagem. Seu autor é Graciano Daemon e não Reinaldo Santos Neves. E, sendo Graciano um poeta, é natural que apele não só pro poético, mas também pro fantástico, o que, em termos práticos, dá no mesmo. Me agrada estabelecer um paralelo entre o Graciano narrador da Ceia e o Gulley Jimson narrador de The Horse’s Mouth, do romancista inglês Joyce Cary (falecido em 1957). Jimson é um pintor obsessivo, e assim a história é narrada do começo ao fim pela ótica de um pintor, que tudo vê e tudo expressa plasticamente, atento sempre às cores e às formas do mundo que o cerca.
Nota-se um tom picaresco por todo o romance (algo que inclusive faz ecoar a influência do Satyricon, precursor do gênero), reforçado por uma atitude de se entregar à própria sorte, assumida por Graciano durante os episódios narrados. Podemos pensar numa releitura do gênero nA ceia dominicana?
Segundo P. G. Walsh (The Roman Novel, p. 2 e 4), o romance picaresco não é invenção dos espanhóis, mas dos romanos, com as duas obras-primas que são o Satyricon de Petrônio e o Asno de ouro de Apuleio. No caso específico do Satyricon, temos um romance essencialmente picaresco quinze séculos antes de Lazarillo de Tormes, texto que inaugura o ciclo picaresco espanhol. Assim, com o Satyricon como modelo, A ceia não poderia deixar de seguir o padrão picaresco em sua estrutura narrativa. Ora, muitas características do romance picaresco se encontram na Ceia: narrador na primeira pessoa, narrativa episódica, situações grotescas e ridículas, personagens recorrentes, isto é, que reaparecem ao longo do relato, amoralidade e cinismo, sátira social, digressões sobre a condição humana, histórias vicárias, ou seja, contadas pelos próprios personagens, etc. Sem dúvida nenhuma, A ceia dominicana pode e deve ser classificada como romance picaresco, mas dentro da tradição romana, inclusive porque tem narrador ingênuo (como Encólpio no Satyricon e Lúcio no Asno de ouro), cuja ingenuidade torna-o vítima das circunstâncias. Para ler a entrevista na íntegra, clique nos links a seguir:
http://www.seculodiario.com.br/novo/exibir_noticia_atracao.asp?id=728
http://www.seculodiario.com.br/novo/exibir_noticia_atracao.asp?id=741
http://www.seculodiario.com.br/novo/exibir_noticia_atracao.asp?id=750.
The Modern Jazz Disciples
09/12/2008
Edú é blue
Enquanto eu sorria, Angela, confusa, deixou cair no gramado um volume de seu Blues Legacies and Black Feminism: Gertrude “Ma” Rainey, Bessie Smith and Billie Holiday. Gentilmente o recolhi e, ato contínuo, perguntei-lhe se era um bom livro, assomando que apreciava muito o blues. Entre tímida e aturdida, Angela confessou-me que era ela a autora e, assim sendo, preferia não manifestar sua opinião. Sorrimos os dois, seguindo pelo gramado do condomínio enquanto trocávamos algumas idéias acerca do blues. Angela reportou que sua releitura do blues clássico trouxe novas perspectivas para esse gênero que sempre foi considerado estéril como música de protesto. Nas páginas 95 (first Vintage Books edition, 1999) e seguintes, Angela faz uma interessante análise paralela de dois blues: Poor Man’s Blues e Washwoman’s Blues, concluindo que Bessie Smith não sofria de nenhuma apatia política como fora tantas vezes acusada, mas apresentava, sim, suas manifestações de protesto quanto às condições de vida do afro-americano e, especialmente, da mulher negra norte-americana que, após a libertação dos escravos, estava condenada a lavar roupa, cozinhar e encerar chão para patrões brancos, além de servir sexualmente a seus violentos maridos. Angela, em seu livro, não se limitou à uma análise estritamente semântica ou sintática das letras cruas, nem tampouco às melodias e aos músicos que a acompanhavam, mas demonstrou de forma inteligente e clara que o blues clássico, com toda a sua simplicidade e objetividade aparente, possuía aquele grau de ironia, conteúdo e qualidade de que nos fala Tandeta e Gracián. Enquanto o amigo Edú não compõe um blues, ficamos com I’m Wild About That Man , com Bessie Smith - a voz mais negra da noite mais profunda, Clarence Williams (p) e Eddie Lang (g), gravada em 1929. A perspicaz escritora, além de traçar com clareza a linha de continuidade entre o blues clássico, o jazz, o rhythm and blues, o funk e o hap, retirando das ingênuas entrelinhas do blues rural do sul e do blues urbano do norte os temperos de protesto, ainda traz todas as letras das canções de Gertrude e Bessie, dificilmente encontradas em outras fontes. Thank you Angela Yvonne Davis. Ou seria a voz mais profunda da noite mais negra? Só mesmo mestre Edú para nos esclarecer.
05/12/2008
Lenda viva
Nos anos 70 e 80 fez parte do trio de Chick Corea com o baixista Miroslav Vitous. Nos anos 90, ajuda a guitarra do cabeludo Pat Metheny soar um pouco mais próxima ao jazz. Os quinze anos recentes tem sido extremamente prósperos e produtivos pra Haynes. Sendo genuinamente músico de jazz, excursiona com regularidade e tem "escritura lavrada" de três residências pra seu conforto nos EUA. Uma delas em Las Vegas, maior parque temático adulto do mundo. Coleciona automóveis clássicos e veste-se com roupas dispendiosas de grifes internacionais. Garantindo, anteriormente, sua eleição como o músico mais elegante da América ao lado de Miles Davis pela revista Esquire, nos anos 60. Um final aparentemente feliz para um indivíduo que a mera passagem do tempo se revela apenas nas "amareladas" páginas rabiscadas do calendário. Para os amigos deixo a faixa Dear Old Stockholm , com Danilo Perez (p) e John Patitucci (b), em mais uma das tantas excelentes formações em trio do mestre das baquetas. O nome do álbum é, como tantos outros, The Roy Haynes Trio, gravado em 1999 e lançado em 2000 pela Verve. Um abraço a todos e até breve!
03/12/2008
02/12/2008
Satyagraha
Nascido em 1929 na Georgia, estado que forneceu tímida fornada de músicos de jazz – lembro agora de dois ou três deles, como Fletcher Henderson, Hank Mobley e Mary Lou Williams – desde cedo convive com a corpulenta discriminação racial do sul norte-americano e, embora fosse filho da classe média, pode testemunhar a profunda segregação, violência e injustiça com que os sulistas negros eram tratados pelos brancos. Como muitos outros negros norte-americanos, King dedicou sua vida à justiça social, baseando sua ação na curiosa idéia da resistência não-violenta, teoria que conhece e simpatiza desde os tempos do colegial, quando lê Essay on Civil Desobedience, de Henry David Thoreau. Em seguida, já em 1951, King decide seguir os passos do pai, pastor da Igreja Batista, ingressando no seminário Crozer. Mais tarde, e já como pastor da Dexter Avenue Baptist Church, King revela-se um brilhante orador, dotado daquela liderança natural que caracteriza certas pessoas, destacando-se na condução do famoso boicote dos ônibus de Montgomery, em 1954. É nesse episódio que King põe à prova, pela primeira vez, sua teoria da não-violência, baseada em parte no que já havia aprendido com Thoreaus, mas também nas lições do teólogo Reinhold Niebuhr sobre o caráter ativo, e não passivo, da resistência pela não-violência, e, sobretudo, na satyagraha, filosofia desenvolvida por Mahatma Gandhi.
Os aspectos fundamentais da teoria elaborada por King são o amor, a compreensão e a benevolência. Para King, resistir de forma não-violenta não significa aceitar passivamente o mal e o ódio, mas confrontá-los com o amor. King não pretende atingir a justiça humilhando ou enganando o adversário, mas convencendo-o de que há um senso moral comum a todos os homens que se propõem a conviver em sociedade, independentemente de sua cor ou sua crença. E para lograr êxito, o adepto da não-violência deve abster-se não somente da violência física, como também e principalmente da violência psicológica. É preciso localizar naquele que nos humilha ou nos odeia a parcela de humanidade que todo ser humano possui, por mais distintos que sejam dos nossos seus valores ou ideais. Como dizia o mestre em seu Pilgrimage to Nonviolence, p. 390 (ver Nonviolence in America: A Documentary History. Ed. Staughton Lynd, Indianapolis: Bobbs Merrill, 1966): “a resistência deve ser dirigida ao mal, não às pessoas que o praticam”. E, embora nesse ponto particularmente eu não concorde com King - a História não depõem nesse diapasão, ele sempre disse que o universo está do lado da justiça. Daí porque, para ele, a não-violência não deve ser utilizada apenas como tática pontual de resistência, mas antes como filosofia linear de vida. Por suas idéias e força, King recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1964 e, quatro anos depois, foi assassinado. Em homenagem a King, deixamos a faixa Struttin’ About retirada do álbum Seven Minds, gravado em 1984 por seu conterrâneo Rufus Reid (na foto acima com o trompetista Woody Shaw). Com ele estão Jim McNelly (p) e Terri Lyne Carrington (d). Que os Dantas e os Queiroz estudem mais a Satyagraha e ponham em prática os ensinamentos de King.